sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Vai uma Black Smoked Oaked Imperial India Pale Ale?

Cerveja: Tripel Karmeliet
Cervejeira: Brouwerij Bosteels, Buggenhout, Bélgica

Buggenhout, na Flandres Oriental, é o berço de duas cervejeiras de referência: a De Landtsheer (criadora das Malheur) e a Bosteels. Esta última, para além de nos brindar com produtos como a Kwak ou a Deus, é a responsável pela cerveja que dá o mote a este artigo, a Tripel Karmeliet.

Criada em 1791 por Evarist Bosteels, a empresa ainda hoje é controlada pela família do fundador, cabendo à 6ª geração, através de Ivo Bosteels e do seu filho Antoine, a continuidade da cervejeira. Deve-se a este último o (re)surgimento da Tripel Karmeliet. A ideia da criação de uma cerveja elaborada com múltiplos cereais já estava na cabeça de Antoine há 3 anos quando, em 1996 e após várias tentativas falhadas nos fermentadores, encontrou uma receita com aquelas características no Museu de História Local da vizinha cidade de Dendermonde. Tratava-se de uma cerveja do século XVII, elaborada pelos monges carmelitas do mosteiro de Dendermonde e tinha como particularidade o facto de ter como ingredientes 3 cereais, cevada, trigo e aveia, nas formas maltadas e não maltadas. A cerveja revelou-se um sucesso e hoje é apontada como uma das melhores Tripels do mundo.

Mas, uma Tripel pode levar vários cereais? E quem define o que é uma Tripel? E, já que falamos nisso, o que raio é uma Tripel?

A história dos estilos de cerveja confunde-se com a própria história da cerveja. A primeira referência conhecida que faz destrinça entre vários tipos de cerveja está gravada na Tábua de Alulu, um documento sumério de 2050 AC, onde o cervejeiro Alulu atesta que entregou um carregamento da "melhor" cerveja ao escriba Ur-Amma. Existiam, portanto, pelo menos, duas cervejas diferentes. 500 anos depois, os assírios mencionam que os hititas tinham mais de 15 tipos diferentes de cerveja. 

É pois natural que os vários povos ao longo dos tempos tenham criado vários termos de forma a distinguir os diversos tipos de cerveja, desde o zythum dos egípcios à cervisae dos normandos. 

Numa primeira fase, a distinção fez-se com base em diferenças substanciais. Por exemplo, em Inglaterra, com a introdução do lúpulo em 1400 foi necessário distinguir a "ale", a cerveja tradicional feita sem lúpulo, da "beer", a cerveja onde entrava a nossa trepadeira preferida. O que nos leva a mais algumas interrogações:

Mas uma "ale" não é uma cerveja de"fermentação alta"? E "beer" não se refere a toda a cerveja?

Eis então que entra mais uma variável em campo: o tempo. Se uma "ale" era uma cerveja sem lúpulo em 1400, na segunda metade do século XIX era uma cerveja com menos lúpulo que uma "beer" e, nos nossos dias, é uma cerveja fermentada a uma temperatura relativamente elevada e com levedura que fica à tona dos fermentadores (daí a "fermentação alta"). Querem mais exemplos? Quando se fala em Stout que tipo de cerveja vos ocorre? Uma loura? Claro que não. Pois no século XVIII era comum as cervejeiras, terem uma versão clara e uma escura da Stout, que não queria dizer mais do que "cerveja forte". Outros estilos desaparecerem enquanto designação e foram-se mutando noutras denominações ao longo dos anos por razões culturais ou comerciais. É o caso da Burton Ale que se transformou em Old Ale e que alguns fabricantes reconverteram em Barley Wine ou Winter Warmer.

Mas quem define um estilo? E onde estão as fronteiras entre cada um? É ponto assente que a organização de estilos tal como nós hoje a conhecemos tem como mentor o grande Michael Jackson. Ainda me lembro da primeira vez que desfolhei o Beer Companion e encontrei dezenas de estilos de cerveja que não fazia ideia que existiam: Lambic, Gueze, Berliner Weisse, Bière de Garde, Adelaide Sparkling Ale, Oyster Stout, Steam Beer. De repente fazia sentido as diferenças entre as pretas, as brancas e as ruivas, as doces e as amargas, as com mais lúpulo e as com mais malte.

Não é muito diferente do catalogar um estilo musical. Isto é rock, aquilo é jazz, aqueloutro é country e todos sabemos do que estamos a falar. O problema hoje em dia é a granularidade que damos a estes estilos, quer musicais quer cervejeiros, como bem apontou o companheiro VdeAlmeida numa tertúlia cervejeira há algum tempo atrás. Alguém sabe a diferença entre Acid Jazz e Nu Jazz? E o que se esconde por detrás de uma banda que toca Psychadelic Stoner Sludge Doom Metal?

O mesmo acontece com Porters que numa prova cega ninguém os distingue de Stouts ou com cervejas de estilos do tipo Double Bourbon Barrel Cherry Imperial Stout. E o que fazer com os OVNIs? Onde catalogar estas?:
  • Black Fox Siempre Loco - Saison feita com cominhos, casca de lima e pimenta preta
  • Thornbridge Cocoa Dance - Mild com tangerina e chocolate
  • Dieu du Ciel Isseki Nicho - Cerveja feita com grão de Imperial Stout, levedura de Saison e lúpulo japonês fermentada em barris de Pinot Noir
  • Swell Drunkin Donut Porter - Porter feito com (adivinhem…) Donuts
  • Short's Key Lime Pie - Golden Ale com limas, lactose, bolachas Graham e creme de marshmallow
A resposta parece-me simples: who cares? Embora a catalogação por estilos seja uma mais-valia quando queremos ter uma ideia do que iremos comprar/consumir, não deverá servir para cercear quer a imaginação do produtor quer a curiosidade do consumidor. Portanto, venha de lá essa Black Smoked Oaked Imperial India Pale Ale.

1 comentário:

  1. Excelente texto e excelente blog!

    Parabéns. essa bolacha da karmeliet é fantástica!

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